A reconstrução e reivindicação de uma mulher depois de tudo aquilo que estimava e em que acreditava lhe ter sido retirado, ilustradas por uma escrita e produção sem limites de inovação. MAGDALENE é a prova de que o mundo é de FKA twigs e ela só nos deixa viver nele.
Maria Madalena é talvez a figura mais enigmática do Novo Testamento. Apesar de não existir qualquer fundamento bíblico de que fora prostituta, os relatos de que acompanhava e amava Cristo incessantemente fizeram com que essa se tornasse a sua urdidura.
A inspiração numa figura bíblica é inesperada para uma artista tão congruente com a inovação e contemporaneidade como twigs, e a artista britânica afasta-se de quaisquer interpretações claras. Todavia, existe mais do que um sopro de familiaridade na história de uma mulher que esteve presente para a crucificação, enterro e subsequente ressurreição de tudo aquilo em que ela, em tempos, acreditou e manteve perto do coração.
A linha que tem vindo a ligar todos os projetos de twigs, já desde os EPs 1 e 2, de 2012 e 2013, é a desconstrução sustentada da dismorfia; das maneiras como conceitos como o amor, a tecnologia e o trauma podem convergir no corpo e fundamentalmente alterá-lo para um estado dissociativo.
MAGDALENE leva esta formulação ao seu ponto de ruptura. Mal ouvíamos falar de twigs desde o lançamento do estrondoso EP M3LL155X em 2015, com justificação. A verdade é que o total processo de fragmentação ilustrado em MAGDALENE foi uma necessidade – o resultado de uma sequência de eventos saída de um pesadelo, que arrancou com a separação publicamente escrutinada de Robert Pattinson, seguida de uma operação de emergência ao útero, para remoção de miomas. “Não tive outra opção para além de desmembrar todos os processos que já conhecia”, escreveu na nota de lançamento do álbum.
Nesta total desolação, twigs encontrou paz na pureza da sua vulnerabilidade, dando origem à melhor e mais poderosa escrita da sua carreira. Aliada a um poderio vocal - nunca tão trabalhado -, e a uma produção meticulosa e extensa de Nicolas Jaar, a singularidade de twigs é notoriamente clara no lead single "cellophane" – uma balada avassaladora de tão suave que é.
A imagem associada à faixa final de MAGDALENE – a dança de varão, uma modalidade de extrema força física, perpendicular à falta de força emocional que ela diz não possuir – remonta à ideia de atuar para o prazer de alguém. No videoclipe, encontramos uma twigs a mover-se numa dança solitária; a reclamar de volta a sua forma física, solidificando o dogma do álbum – a força profunda e a fraqueza profunda não são diametralmente opostas, mas constroem, sim, um circuito fechado entre si.
Contudo, o projeto não deixa de ter momentos de mais evidente raiva e frustração, inerentes a um coração partido e a um sentimento de injustiça por parte do universo, como “home with you” e o rosnador destaque “fallen alien”, faixas onde encontramos uma twigs viril e perseverante.
MAGDALENE é um projeto tanto de profunda subtileza, como de intensa emoção; um conto acerca do abraço à desolação e o sacríficio necessário para a ultrapassar. “A woman’s work/ A woman’s prerogative”, canta twigs na assombrosa faixa central “mary magdalene” - “A woman’s time to embrace / She must put herself first”. (“A altura de uma mulher se abraçar / Ela tem de se pôr primeiro.”)
O facto de que a dor deu origem a um álbum desta perfeição e a um crescimento artístico deste tamanho diz-nos que, apesar de se relacionar com a história de Maria Madalena, FKA twigs tem o poder de se distanciar da figura bíblica; de apagar a linha entre o clássico e o avant-garde. O seu tempo é agora e quem dita a sua história é ela mesma - mais ninguém conseguiria.
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